A Barca de Caronte, de Michelangelo Buonarroti. Composição presente na pintura O Juízo Final (Capela Sistina, no Vaticano)* |
> Estou desde início de maio tentando fazer essa postagem, contudo só consegui agora. Não sou muito de expressar minha opinião política, essa é uma falta grave que possuo, mas no momento que estamos não posso deixar de cumprir a função que cabe ao intelectual (se é que posso me chamar assim), como dizia E. Said: a de falar a verdade ao poder.
Para tanto, recorrerei mais uma vez à Literatura, companheira e amiga que sempre faz ecoar a voz dentro de mim, mesmo quando não possuo coragem para proferir suas palavras. Hoje trago para vocês o poema "A pátria e o barqueiro sombrio", da professora doutora Carina Duarte.
A pátria e o barqueiro sombrio
Pátria,
É de lágrimas este abril
E tu, assim, conduzida
Pelo barqueiro sombrio,
Distante, agonizas.
Fria!
É de lágrimas este abril
E tu, assim, da humanidade perdida,
À dor, que caronte não sentiu,
Já não pões balizas.
Asfixia.
É de lágrimas este abril
E tu, pátria, jazes, sem vida.
E há muitos corpos à espera
E, no comando da barca, a besta-fera.
- Carina Duarte
Vocabulário:
Caronte: personagem da mitologia grega responsável por levar os mortos até o mundo de Hades. Atravessava o rio Estige e o Aqueronte, que separavam o mundo dos vivos e dos mortos, levando em sua barca as almas das pessoas falecidas.
Interpretando o Texto:
O poema foi escrito em 30 de abril deste ano. Faz referência ao início da pandemia do Covid-19 e seu reflexo no Brasil (em especial, ao posicionamento do presidente).
O texto inicia com o vocativo "Pátria". Todas as estrofes serão dirigidas
a ela, na tentativa do eu lírico de chamar a atenção da nação para sua
situação atual.
A realidade vivida por nós brasileiros é traduzida em versos pela
autora. Essa pandemia que se alastrou pelo mundo, só ressaltou a
inadimplência do nosso governo, ou melhor, a indiferença de nosso
governante para com sua população.
Este "barqueiro sombrio" é semelhante ao da imagem exposta no início desse post. Na pintura de Michelangelo, Caronte, enfurecido e ajudado por seres diabólicos, expulsa a remadas os mortos de sua barca, entregando-os a Minos, um dos juízes do mundo inferior. O desrespeito com aqueles que estavam sob sua responsabilidade é tema presente no poema: "À dor, que caronte não sentiu"; ele parece não sentir a dor de seu povo e vê distante a Pátria a
agonizar.
O que resta aos pobres mortais, que morrem aos montes, que perdem
familiares e amigos, é o lamento, as lágrimas que escorreram por abril e
se prolongam até hoje.
O eu lírico cita a "humanidade perdida", o que podemos interpretar como a
falta de humanidade no trato com os brasileiros, ou como uma referência à quantidade alarmante de pessoas que andam morrendo devido à doença ("E há muitos corpos à espera").
A besta-fera, no poema o Caronte que conduz a barca, para nós, o
presidente da República (e todos aqueles que concordam com seus
ditos e atos) faz a Pátria(barca) jazer. Melhor dizendo, suas ações
aniquilam qualquer esperança de reerguer a nação, mesmo que não possua
culpa pela pandemia, contribui com o agravamento da situação por meio de
seu completo descaso.
Pátria, é de lágrimas esse mandato.
Professora adjunta da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, doutora em Literatura Comparada, pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em
Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas e graduada
em Licenciatura em Letras Português-Espanhol pela
mesma instituição. Possui vários artigos publicados
em periódicos científicos e em anais de eventos. É
autora de seis capítulos de livros e de dois livros.
Apresentou dezenas de trabalhos em congressos e
seminários e ministrou minicursos e palestras na
área de Literatura.
(Texto retirado do
Lattes da autora)
*Vírus da Arte & CIA. Michelangelo - A Barca de Caronte. Disponível em: <https://virusdaarte.net/michelangelo-a-barca-de-caronte/>
SAID, Edward W. Falar a verdade ao poder. In: Representações do Intelectual: as Conferências Reith de 1993.
São
Paulo:
Cia. das Letras, 2005. p. 89-104.
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