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Conhecendo "Congresso Internacional do Medo", de Carlos Drummond de Andrade

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"Congresso Internacional do Medo" instaurado pelo Coronavírus (uma análise do poema aos olhos da quarentena)

Em tempos de pandemia, em que precisamos ficar isolados para tentar impedir a disseminação do Coronavírus, o medo parece reger nossos dias. Como enfrentar o desconhecido? O atualmente incurável? Como não temer, quando vemos aumentar toda hora os casos de morte pela doença ao redor do mundo? 

>  Pensando nisso, nunca os versos de Carlos Drummond de Andrade, em "Congresso Internacional do Medo", fizeram tanto sentido para mim. Confiram abaixo:


Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

- Carlos Drummond de Andrade 

Vocabulário

esteriliza: do verbo esterilizar (tornar estéril; inútil)


Interpretando o Texto: 
O eu lírico trabalha, em todo poema, com a universalização do medo, um dos sentimentos mais primitivos do homem. Isso fica explícito desde o título: "Congresso Internacional do Medo".
Sua escolha em iniciar o primeiro verso pelo advérbio "provisoriamente", indica dois fatos: 1) diante do medo, até o amor se acovarda (não há espaço pra ele neste mundo temeroso) e 2) que esta é uma condição temporária, então, há a esperança de que um dia o amor volte a reinar, a ser cantado.
Ao invés do amor, afirma que "Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços". Se o temor inutiliza qualquer tentativa de relação humana, sua existência soberana aos outros estados afetivos se torna verdadeira, assim como a frase do eu lírico de que "Existe apenas o medo". 
Por isso, nega a existência do ódio, que seria apenas o pavor do desconhecido/incompreensível. Basta assistirmos os noticiários para compreendermos tal ideia: alguns cidadãos raivosos andam discriminando chineses (culpando-os pelo Coronavírus), mas a verdade é que esta reação não advêm do ódio ao povo Chinês, e sim do pânico que sentem em contrair uma doença ainda não decifrada pela medicina.
Para o eu lírico, o medo é "nosso pai e companheiro". Cada ação do ser humano é resultado deste sentimento, que guia e rege nossa vida. Contudo, o que nos apavora tanto? Encontramos a resposta a partir do sexto verso, onde elenca alguns temas de seu congresso internacional. 
Aqui, nesta listagem dos temores, é onde a genialidade do autor fica mais clara. Quando diz "o medo dos soldados", faz referência tanto ao medo que o militar sente, quanto ao terror que ele provoca nos demais. Esta estratégia sintática vale para todo o restante entre as vírgulas: quantas mães, por exemplo, não temeram pelos filhos combatentes na guerra? E quantos filhos não se afligiram após aprontarem, com medo de serem repreendidos pelas mães? 
É preciso enfatizar um detalhe: o eu lírico cita alguns dos principais pilares de nossa sociedade, como a família, a igreja, o exército e a democracia, indicando que todos estão subordinados à ação do medo, tão natural e poderoso nas decisões cotidianas (e igualmente perigoso).
O último canto do poema é dedicado à morte, um dos maiores mistérios da humanidade. Obviamente ela é temida, assim como o desconhecido que segue a sua ocorrência.  O medo apresenta-se capaz de reger até a morte. 
Nos dois últimos versos tomamos consciência (se esta ainda não tiver despertado) da ciclicidade gerada pelo pânico: "Depois morreremos de medo / e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas". A escolha de coloração da flor não foi sem propósito, costumamos usar "amarelar" para indicar a falta de coragem de uma pessoa.
No poema, o nosso desfecho indica uma existência marcada pelo medo, o qual permanecerá mesmo após nossa morte. Ele será nosso fruto/legado, deixado para o mundo, resultando na própria covardia e reiniciando o ciclo. Nem o tempo, que costuma devorar tudo, é capaz de impedir que o medo exerce poder sobre os homens (muitas vezes o auxilia).
Embora Drummond tenha escrito essa estrofe tendo como cenário a II Guerra Mundial, a verdade descrita em seus 11 versos causa uma identificação com o leitor atual, principalmente nesses últimos meses em que enfrentamos o COVID-19. 
Temos medo de sair na rua e, também, de ficar em casa. Tememos que descubram se tratar de uma doença incurável, ao mesmo tempo que tememos pela prolongamento indeterminado da situação em que estamos, onde não temos respostas ou certezas... Enquanto escrevo esse texto, as únicas constantes que vejo são: o medo que nos acompanha e a atemporalidade da obra de Carlos Drummond de Andrade.


>>>  Gostaram do poema? Concordam com o autor? Espero que todos estejam bem nessa quarentena (por favor, fiquem em casa!). Sei que pode parecer assustador, mas vocês não estão sozinhos. O nosso pequeno universo sempre estará aqui para ouvi-los 😊 




Carlos Drummond de Andrade foi um dos grandes escritores do período do modernismo brasileiro. Nasceu em 31 de outubro de 1902, em Itabira do Mato Dentro (interior de Minas Gerais). Publicou seus primeiros trabalhos no Diário de Minas, em 1921. Apesar de ter se formado em Farmácia na Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte, não exerceu a profissão, trabalhando como professor no Ginásio Sul-Americano de Itabira. Seu primeiro livro "Alguma Poesia" foi publicado em 1930, sendo precursor da chamada "poesia de 30". Drummond faleceu no Rio de Janeiro, no dia 17 de agosto de 1987.


*Definição da palavra do vocabulário retirada da Infopédia (Dicionários Porto Editora) e do Dicionário Online de Português.

**Veja, também, a análise  de "Congresso Internacional do Medo", do Recanto das Letras. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/392991>

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