Tudo se passou no sobrado da família Lamborja. Casa grande, no final da ladeira de paralelepípedos, com um jardim invejado pelas pessoas que passavam em frente. Era impossível achar alguém que não olhasse principalmente pelas estátuas gregas que a ornavam. As roseiras como aquelas nunca vi em lugar algum, eram o orgulho dos moradores, principalmente do jardineiro que as cultivara desde raminhos. Esse homem notavelmente sensível, que dialogava como ninguém com a terra, era o Senhor Solavande, de primeiro nome Jaime. Beirava uns 43 anos, suas mãos eram calejadas do trabalho e em seus lábios sempre havia um sorriso de orelha a orelha. Quando a senhorita Clara tinha 7 anos, ele juntou-se à família. Vinha de uma cidadezinha no interior do Mato Grosso, a procura de um parente e, não sei bem como, acabou ficando na casa desses desconhecidos. Muito bem tratado por todos, jamais os deixou. Suas despesas pagava com seu sacrifício, não tão difícil, já que onde tocava tudo florescia.
Deixemo-lo de lado um pouco, é hora de apresentar os outros integrantes desse conto. Clara. O que falar sobre essa menina de longos cachos ruivos? A melhor definição que encontro é a doçura. Vivia fazendo caridade, jamais desprezava as pessoas por não serem tão favorecidas financeiramente como ela; era uma verdadeira dama, dominava as artes com leveza e precisão e falava mais de cinco idiomas. Desde pequena fora criada nessa casa, tendo-a como herança assim que seus pais morreram, bem como os milhões de dólares que havia no banco.
Seu melhor amigo era Jaime, quem muitas vezes preencheu o vazio deixado pela falta de seus parentes, até mais que seu marido Flávio. Flávio era magnífico, homem esbelto, de olhos negros tão profundos quando as sombras presentes nas entranhas da terra. Quando saíam eram puros beijos, abraços e múltiplas carícias, que deixavam enciumados os mal amados que encontravam no caminho. O marido acabara de iniciar sua carreira de juiz, com apenas 28 anos, e tinha um futuro muito promissor. Digo tinha, pois os três que lhe apresentei já estão mortos. Então deve estar se perguntando o porquê das minhas preocupações, simples, vou discutir com você leitor os momentos e os motivos dos ocorridos, já que até hoje isso é um mistério. Sinto-me uma Sherlock Holmes carioca.
Em uma noite quente de verão, um rebuliço descomunal começou na rua. Carros de polícia cercavam um sobrado amarelo lotado de traços europeus. Eram sirenes para cá, gritos para lá, pessoas curiosas debruçadas nas janelas vizinhas disputando espaço para ver o que acontecia. Muita informação ao mesmo tempo. Uma mulher se aproximou da casa e começou a perturbar os policiais, parecia ser uma discussão. Todos atentos, a desconhecida berrava, estava de bobes na cabeça e uma camisola velha sobre o corpo. O que dizia era incompreensível, estava visivelmente bêbada. Balançava os braços tentando reforçar uma tese que não existia, algo sobre carrapatos e borboletas. Por sorte uma mocinha, aparentemente sua filha envergonhada, empurrou-a para dentro de uma casinha ao lado do bar na esquina. Os homens maltrapilhos que anteriormente jogavam bilhar pararam para ver o barraco armado. De repente chegou uma ambulância apressada e, quase que despercebido, saiu da casa dos Lamborja, trazido numa maca por homens do resgate, um embrulho envolto em saco plástico preto, no formato de um corpo na fase adulta, que rapidamente foi escondido atrás das portas da ambulância, deixando todos os presentes intrigados.
Na rua foi aquele falatório. Especulações de quem poderia estar no automóvel e o que tinha ocorrido eram comuns. Será que era seu Flávio? Ah, não podia ser. Ele era um rapaz tão jovem, com aqueles cabelos pretos rebeldes, seria um tremendo desperdício. Se não era ele restava sua esposa a senhora Clara. Mas ela? Não. Uma mulher meiga, que vivia em obras sociais, interessada no bem estar dos menos favorecidos, Deus não poderia ser egoísta ao ponto de levá-la. Se não era eles quem poderia ser? Durante toda a madrugada hipóteses foram levantadas acerca do ocorrido, aposto que muitos fofoqueiros mal dormiram pensando no que realmente aconteceu, contudo somente à tarde a verdade foi esclarecida. O corpo pertencia a Jaime Solavande, o jardineiro. Uma empregada o encontrou degolado no jardim e chamou a polícia.
Neste dia e nos seguintes a polícia vinha recolher informações na casa bem como com os vizinhos, tentando juntar peças chaves desse quebra-cabeça. Até chegaram a achar que o casal poderia ser o assassino, vejam só. Jaiminho está há tanto tempo trabalhando nessa casa que se tornara da família. Tinha um quarto próprio, fazia as refeições com eles e quando a menina Clara era criança, ele é que lhe ensinava brincadeiras de pique. Todos os momentos dessa família foram passados junto dele, lembro-me até mesmo do relato que me fez sobre o dia em que Flávio pediu a menina em casamento. O peito do senhor se enchia de orgulho para contar. Sabe aquelas noites de Carnaval, em que todos ligam a TV para assistir o desfile das escolas de samba? Então, nesse dia a família da mocinha, na época com 21 anos, foi toda junta para a Avenida ver os carros alegóricos de pertinho. Apenas ela e o jardineiro ficaram no sobrado. Flávio entrou despercebido e apanhou uma rosa vermelha do jardim, com a permissão do cuidador delas. Foi ao encontro da mulher da sua vida que, sentada no banco branco entre as cascatas de roseiras que formavam um túnel aconchegante, parecia uma estátua de marfim. Surpreendeu-a nesse porto seguro fascinante e inspirador. Era o lugar dos dois. Flávio se ajoelhou e permitiu que as palavras escapassem de sua boca como uma chuva de pétalas envolventes e mágicas, declarando todo seu amor e seu desejo de fazê-la sua. Quando terminou, o olhar de ambos se cruzou e nada mais foi dito. O silêncio já bastava para os corações que se comunicavam tão bem. Apenas uma coisa manchou esse dia de forma dolorosa: ela ficou órfã! Toda sua família sofreu um acidente de trânsito e, sem nenhuma exceção, conheceram o paraíso da vida após a morte, como Clara gostava de pensar. Assim, dado sete meses e alguns curativos, eles se casaram.
A cada dia pareciam mais apaixonados, era "Meu docinho" de um lado e "Minha vida" do outro, até que algo começou a mudar. O conto de fadas perdeu as asas e transformou-se numa história de terror. Sem explicação aparente os modos de Flávio tornaram-se frios, chegava mais tarde em casa com a evolução das semanas. Sua procura pela mulher já não era a mesma. Estava visivelmente alterado, principalmente com Clara. Quando era questionado respondia brevemente com informações vagas e ríspidas. Lembro-me de um dia em que passou dos limites e espancou-a até isso passar de um caso isolado para uma atitude constante. Acredito que em sua cabeça, meu amigo leitor, pergunta-se um motivo. Fácil: o ciúme. Também há a possibilidade de haver um problema no trabalho, mas não era isso. Todos os elogios de seus amigos eram voltados a ela, como era linda, encantadora, e ele, um homem de sorte. Pessoas maldosas implantavam a desconfiança em sua cabeça dizendo que, como ela saía constantemente desacompanhada com o pretexto de fazer caridades, havia a possibilidade de uma traição. Dessa forma o ciúme começou a ser doentio.
Numa tarde nublada de primavera, chegou mais cedo em casa e como sempre foi direto ao seu escritório. A janela de madeira dava para o jardim. Olhou o tempo e no exato momento, infelizmente, Clara saía do túnel de flores, contente, acompanhada pelo jardineiro. Ele segurava a mão da menina e beijava, enquanto ela sorria, o ciúme subiu a cabeça de Flávio. Sentia cheiro de traição. "Na minha casa? Embaixo do meu nariz?", ele pensava sem se conformar. Era visível em seus olhos escuros a raiva, parecia o contorno de um leão sedento de sangue pronto para atacar o inimigo. Traído. Nada era pior, mas ele se vingaria, ela nunca apanhou tanto como naquela noite. O sono era a melhor solução para esquecer as dores, contudo até mesmo fechar os olhos lhe causava grande dor. Após uma semana, essa cena se repetiu, um pouco confusa e com uns detalhes alterados. Novamente ele observava o jardim pela janela, contudo lavava as mãos ensanguentadas. Clara saiu correndo pelo jardim e o encarou. Ele estava frívolo, seu olhar perturbador e cruel, as lágrimas queriam se libertar do corpo da mulher, mas ela não permitia. Ele sorriu um sorriso que a encheu de ódio e medo. Viu as mãos e tentou não pensar no que aparentemente já sabia. Entrou na cozinha silenciosamente. Passado algumas horas, uma empregada assustada chamou a polícia, pois havia encontrado o corpo do jardineiro, degolado, deitado no banco branco entre as roseiras, começando toda aquela confusão relatada no começo desse conto.
Você deve estar pensando que Flávio é o assassino, talvez, contudo antes me permita contar o que ocorreu antes do assassinato. Toda sexta Clara tinha uma reunião de um fundo social para comparecer, contudo nesta semana específica, ela terminou mais cedo, fazendo-a ir antes para casa. Estava tudo tão quieto quando chegou, marido no trabalho e empregados nos seus deveres, na sala tudo estava normal, exceto por um chapéu pendurado no mancebo atrás da porta sendo que não havia visita alguma. "Provavelmente Flávio deve ter esquecido", pensou. Resolveu aproveitar para conversar com o jardineiro e encaminhou-se ao jardim. Foi entrando na gruta quando começou a ouvir uns ruídos estranhos, não vou descrever com detalhes a cena que viu. Em resumo posso dizer que seu marido nu acariciava Jaime, não queira saber onde. A cena a tomou de nojo e fúria. Agora tudo fazia sentido. Ela apanhava, pois ele tinha medo de que ela lhe arrançasse o Jaime. Sentia-se mal em não poder assumir seu verdadeiro amor e descontava isso nela, usando-a para agradar a sociedade enquanto em casa a história era outra. Então por que se casara? Para ficar perto de quem realmente lhe era importante, a mulher começou a ligar os fatos, deles sempre terem uma boa amizade, sempre juntos, tão companheiros. A cena nunca saiu de sua cabeça, e a vontade de vingança era maior do que sua razão. No dia em que o amante foi degolado, Flávio admirava o jardim pela janela, enquanto se preparava para encontrar seu amante, porém havia se cortado com uma tesoura acidentalmente no trabalho e lavava as mãos. Nesse momento, Clara saiu correndo do lugar onde antes os dois se amavam e o encarou. Um cisco caiu em seu olho e começou a sentir dor, mas manteve-se firme, com um sorriso sínico e traiçoeiro. Ele começou a ficar receoso, "Por que ela sorria? Será que...? Não!", pensou e reparou que o barrado do vestido que a cobria estava sujo de sangue respingado, bem como ele todo. Ela entrou na casa feliz, sem fazer barulho. Horas depois o corpo do jardineiro foi encontrado morto entre as flores.
Lógico que nenhuma dessas lembranças foi dita aos policiais, nenhum dos dois seria louco de assinar sua sentença de morte. Era preferível fazer a família de Jaime Solavande sofrer com as incertezas. Com a morte do jardineiro, não havia mais um laço entre os dois, aos poucos foram se afastando, começaram por dormir em quartos separados; depois faziam refeições em momentos diferentes, até não trocarem entre si uma única palavra, mas quem via de fora nada percebia, pois todas as noites, com pretexto de aproveitar a vida, iam juntos a festas e exerciam os seus teatrinhos do matrimônio. Não sei ao certo quanto tempo suportaram viver assim, isso aconteceu há alguns anos antes de Clara e Flávio morreram acidentalmente queimados no jardim. Neste trágico dia, senti-me totalmente livre. Confesso caro leitor, eu, a viúva Luzia Solovande, finalmente completei minha vingança. Matei todos.
* BASSANELLI, Mayara. Entre Flores.
Conto escrito em agosto de 2013, durante meu segundo ano do Ensino Médio, para a disciplina de Língua Portuguesa.
Conto escrito em agosto de 2013, durante meu segundo ano do Ensino Médio, para a disciplina de Língua Portuguesa.
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